Entenda o que está em jogo no julgamento sobre testemunhas de Jeová e transfusão de sangue
Cinco ministros já votaram no sentido de que a recusa do tratamento com o sangue de terceiros é legítima para as pessoas que seguem os preceitos religiosos (veja detalhes mais abaixo).
A análise do caso será retomada com o voto do ministro Nunes Marques.
O debate envolve direitos fundamentais previstos na Constituição, como a saúde, a dignidade da pessoa humana, a legalidade e a liberdade de consciência e de crença. A religião professada por testemunhas de Jeová não permite o recebimento de sangue de terceiros.
O que o Supremo está julgando?
O Supremo analisa dois recursos que tratam de especificidades no tratamento médico de pessoas da religião Testemunhas de Jeová.
O grupo religioso entende que há passagens na Bíblia que estabelecem a necessidade de se abster de sangue. Consideram que o sangue representa a vida; por isso, evitam tomar a substância por qualquer via em obediência e respeito a Deus.
Em um dos casos, a questão é saber se um paciente nessas circunstâncias pode recusar terapias de saúde que envolvem o uso de sangue de outras pessoas. E, se for possível a recusa, como ela vai ser feita.
Em outro, o debate envolve o papel do Poder Público diante da necessidade de custeio de tratamento específico para este grupo religioso, sem o uso de transfusões.
Por que a questão está sob análise do Supremo?
As disputas começaram nas primeiras instâncias da Justiça e chegaram ao Supremo porque tratam de princípios e direitos previstos na Constituição — entre eles, a saúde, a dignidade da pessoa humana, legalidade, a liberdade de consciência e de crença.
Ao analisar os temas, a Corte vai buscar equilibrar a aplicação destes princípios, a partir da interpretação da Constituição.
Quais são os casos concretos?
Um dos processos, sob relatoria do ministro Gilmar Mendes, envolve uma paciente de Alagoas. Ela foi encaminhada para cirurgia de substituição de válvula aórtica (cirurgia cardíaca) pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
Por ser testemunha de Jeová, decidiu fazer o procedimento sem transfusões de sangue de terceiros, assumindo os possíveis riscos.
A diretoria da Santa Casa de Misericórdia de Maceió (AL), no entanto, condicionou a realização da cirurgia à assinatura de termo de consentimento da paciente para a realização de eventuais transfusões. Ela não aceitou e o procedimento foi cancelado.
A paciente acionou a Justiça contra o Poder Público, para obter a cirurgia sem a transfusão pelo SUS. Na primeira e na segunda instância, o pedido foi negado.
A Justiça considerou que não havia garantias de que o procedimento iria ocorrer sem riscos para a paciente, se fosse da forma como solicitada por ela.
O outro caso, que tem Luís Roberto Barroso como relator, é de um paciente do Amazonas, que buscou obter o direito de realizar uma cirurgia ortopédica em hospital público sem transfusão de sangue.
Nas instâncias inferiores, o Poder Público foi condenado a ofertar e custear o tratamento, garantindo o direito à saúde de forma compatível com as convicções religiosas.
Representantes dos pacientes argumentaram que o tratamento sem sangue tem chancela da Organização Mundial de Saúde e que o SUS já tem os equipamentos necessários para atender os pacientes que têm recusa terapêutica ao uso de sangue.
Quais são as posições dos relatores e dos demais ministros?
Barroso votou para reconhecer que as testemunhas de Jeová têm o direito de recusa à transfusão de sangue em qualquer procedimento médico.
E que o Poder Público tem o dever de fornecer o tratamento alternativo no âmbito do próprio SUS para pessoas que fazem parte da religião, desde que o custo não seja desproporcional.
Se o paciente não tiver condições de arcar com os gastos, o ministro considerou que é razoável que os custos sejam pagos pelos governos.
"Existe direito das pessoas que professam a religião Testemunhas de Jeová de recusa à transfusão de sangue em qualquer procedimento médico", afirmou o presidente da Corte.
"Existindo tratamento alternativo no âmbito do próprio SUS, parece fora de dúvida que ele seja oferecido ao paciente nessas circunstâncias. Portanto, há um dever do Estado, desde que isso não represente um ônus desproporcional. Sendo o paciente hipossuficiente, que não têm condições financeiras favoráveis, é razoável e proporcional o custeio do deslocamento e da permanência pelo tempo necessário na localidade da instituição que oferece o procedimento", completou.
O ministro deixou claro que a recusa do tratamento não pode ser feita por uma pessoa para outro paciente. Não pode, por exemplo, ser feita por uma pessoa para um menor de idade — pais para filhos.
A recusa deve ser manifestada por um paciente que seja maior de idade, capaz e com condições de discernimento. A vontade deve ser expressa de forma livre, voluntária, autônoma e sem coação.
É preciso que esteja expressa, seja prévia ao ato médico e seja atual (é possível mudar de ideia). Antes da decisão, o paciente deve ser esclarecido, com informações médicas completas, sobre os riscos do tratamento.
O relator do segundo processo, ministro Gilmar Mendes, votou na sequência. Acompanhou o entendimento do ministro Barroso no primeiro caso. Acrescentou que o médico não pode impor o procedimento recusado pelo paciente.
A autodeterminação e liberdade de crença — quando houver manifestação livre, consciente e informada de pessoa capaz civilmente em sentido contrário à submissão ao tratamento — impedem a atuação forçada dos profissionais de saúde envolvidos, ainda que presente risco iminente de morte do paciente", afirmou o decano.
"Ainda subsiste o dever de zelar pela vida do paciente através de todas as outras técnicas e procedimentos disponíveis e compatíveis com a crença por ela professada", prosseguiu.
"A atuação médica em respeito à legítima opção realizada pelo paciente não pode ser caracterizada, a priori, como uma conduta criminosa, como omissão de socorro. É preciso que se analise, caso a caso, se todos os meios aceitos pelo paciente foram empregados. De igual sorte, adotados todos os mecanismos aceitos pelo paciente, não há que se falar em responsabilidade civil do Estado ou do agente responsável em razão de danos sofridos pela ausência de transfusão de sangue", completou.
Barroso também acompanhou as conclusões de Gilmar. Seguiram nesta linha os ministros Flávio Dino, Cristiano Zanin e André Mendonça.
Quais são as teses propostas?
Os casos têm repercussão geral, ou seja, a decisão do plenário será aplicada a processos semelhantes que tramitam em instâncias inferiores. Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça, 1.461 processos com os mesmos temas aguardam uma solução.
Os relatores, então, sugeriram textos de tese para orientar a atuação da Justiça nestes casos.
Barroso propôs a seguinte tese:
"Testemunhas de Jeová, quando maiores e capazes, têm o direito de recusar o procedimento médico que envolva transfusão de sangue com base na autonomia individual e na liberdade religiosa.
Como consequência, em respeito ao direito à vida e à saúde, fazem jus aos procedimentos alternativos disponíveis no Sistema Único de Saúde, podendo, se necessário, recorrer a tratamento fora de seu domicílio.
Até o momento, os ministros chegaram aos seguintes entendimentos:
pacientes Testemunhas de Jeová podem recusar procedimentos médicos que envolvem transfusões de sangue;
a manifestação de vontade deve ser expressa, feita por um paciente maior de idade, capaz e em condições de discernimento;
essa manifestação também deve ser livre, voluntária e autônoma, sem nenhum tipo de coação;
além disso, a expressão da vontade deve ser inequívoca, clara, feita de forma prévia à ação médica;
se o paciente não puder se manifestar (quando está inconsciente, por exemplo), vale diretiva antecipada de vontade, caso ela exista;
a manifestação do paciente deve ser esclarecida. Ou seja, ele precisa ter sido previamente informado sobre o diagnóstico pelo médico de forma completa e compreensível. Além disso, deve ter dados sobre os detalhes do tratamento, riscos, benefícios e alternativas;
a manifestação de vontade vale para cada pessoa e não é transferível. Uma pessoa não pode decidir por terceiros, principalmente menores de idade.
Como os temas estão em discussão, é possível que estas ponderações fiquem na decisão do julgamento (no acórdão) ou também passem a constar da tese.
(G1.com)
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